Era domingo de tarde. Meus olhos
estavam vidrados no chão e eu tremia muito. A dor já me consumia por completo e
era inútil ainda tentar reagir. Não era o fim que eu esperava ter, nem o que a
vida me daria se estivesse seguindo seu curso natural. Mesmo inconformado eu
sabia que não havia mais jeito, era apenas uma questão de tempo.
Zonzo,
confuso, ainda assim eu conseguia me lembrar vagamente do que havia acontecido
minutos antes. Foi tudo muito rápido. Eu estava andando tranquilo, observava o
mundo ao meu redor e acreditava, no mais íntimo do meu ser, que ele era
realmente muito bom.
Fui
até uma casa, que eu já estava acostumado a visitar, e lá me ofereceram uma
refeição. Quanta gentileza, pensei. Nós éramos muito diferentes, isso é
verdade, tínhamos personalidades, pensamentos e jeitos de ver o mundo
totalmente diferentes, então era muito bom saber que era sim possível superar
as diferenças e viver em paz. Aceitei a comida de bom grado e foi aí que
começou o meu inferno particular.
Não
durei mais do que alguns segundos de pé e caí. O ancião da família e um jovem
adolescente vieram correndo, pensei que seria socorrido logo e ficaria tudo bem
em breve. Ledo engano. Riam de mim e praguejavam a minha existência. Eu já não estava em condições de entender e
só clamava por misericórdia. Ainda assim, ergueram-me e levaram para fora da
casa.
Agora
estou aqui. No chão. Sozinho, no frio, jogado como um nada há sabe lá Deus
quanto tempo. Para mim é uma eternidade. Algumas pessoas pareceram ter passado
por mim - não sei se eu estava louco ou será que já havia morrido e nem sabia?
O que eu sei é que ninguém me notou, parou ou ajudou.
O
velho amargo e rancoroso e o jovem sórdido de antes ainda vieram me ver. Com
raiva, não acreditavam que eu ainda estava vivo. Senti a presença de uma mulher
com eles. Com dificuldade consegui ver seu rosto, ela também me olhou. Tão fria
– diferente dos outros, não esboçava nenhuma emoção ou reação – que naquele
momento eu não sabia se era uma pessoa ou um robô. Mas já não fazia diferença.
Voltei
o olhar para a minha frente e lá eles ficaram vidrados. Ao fundo eu vi o sol se
pôr, o céu ficar colorido. Ah, como eu gostava daquela cena! Se me restasse
mais algum tempo ainda diria para alguém que o mundo é bom sim, vale apena
acreditar e lutar por ele.
Vi
também duas imagens se formarem a uma certa distância. Mais uma mulher,
distraída com seu celular, segurava pelas mãos uma menina. Uma garotinha linda,
carregava com graça toda a sua inocência, que um dia daria lugar a fortaleza de
uma mulher. Ela me fitava assustada, nesse momento já havia parado de andar.
Era inútil sua mãe tentar convencê-la a voltar a caminhar.
Resolvi
que era com ela que eu queria consumar meu último sopro de vida. Olhei bem no
fundo de seus olhos – sabia que mesmo com a distância isso seria possível, nós
estávamos conectados naquele momento.
Não,
eu não vou te contar a minha história até aqui, não tenho tempo para isso.
Muito menos irei corromper sua infância com a maldade dos humanos, contando
como e o porquê desse meu fim. Sei que agora parece ser muito difícil
compreender tudo o que está se passando, mas não tenha pressa, provavelmente
nem eu sei direito.
Você
vai crescer algum dia, encontrar muitos como eu. Também terá o desprazer de
encarar a maldade de frente e provavelmente, assim como agora, vai continuar
assustada e sem entender.
Infelizmente,
nem todas as vidas são valorizadas, muito menos as mortes serão respeitadas.
Sou um exemplo disso. Ser quem a gente é, tem um preço muito alto, quando se desvia
daquilo que os outros gostam e esperam de todos.
Minha
mãe dizia que eu não deveria ser eu mesmo porque isso ainda me traria sofrimento.
Eu fui pelo caminho contrário e não me arrependo. Eu vivi e fui muito feliz,
acredite nisso. Senti que tudo valeu a pena e o mundo, ah, esse vale mais
ainda. Não ponha a culpa nele.
Lute
pelo o que você acha certo e imponha com orgulho a sua existência, assim, como
é. Porque você é perfeita, desse jeito. Eu desejo de todo coração que você seja
muito feliz e tenha mais sorte que eu. Menina linda, no meu último sopro de
vida, eu ainda ganhei como presente poder te conhecer. Não te peço
muita coisa, um dia eu garanto que você irá entender tudo. Hoje, só tenho um
pedido: Carregue em seu peito o meu legado. Nasci gato e morri por ser quem eu
fui.
-Amanda Sousa
Kinesianos, esse é mais um conto do "Epifanias diárias". Isso aconteceu realmente e eu procurei mudar o ponto de vista para que levasse todos a uma reflexão. Existem várias questões a se pensar.
Comentem aqui embaixo o que vocês acharam do texto de hoje e se vocês estão gostando do "Epifanias diárias". A opinião de vocês é muito importante para mim.
Beijos e até breve!
Amanda Sousa
Que texto maravilhoso. Parabéns. (Mas até a última linha eu achei que era um cachorro.)
ResponderExcluirOi, Zulmira! Tudo bem? Muito obrigada! Que bom que você gostou, fico feliz! Nesse caso era um gato mesmo rsrs, mas também poderia ter sido um cachorro, com certeza!
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