Questão
de tempo
Início de festa
de família. Era aniversário de dois irmãos gêmeos. De onde eu estava, sentada
sozinha em uma mesa no final do salão, vi quando um homem aparentemente
desconhecido passou pela recepção. Estava muito bem vestido e destonava dos
outros convidados, naquele ambiente com pessoas, que assim como seus trajes,
eram bem mais simples.
Parou
de frente a uma mesa, repleta dos primeiros familiares que já começavam a
chegar. De trás dele surgiu uma senhora, com idade mais avançada, cabelos
brancos. Um vestido rosé e um largo sorriso no rosto. Sua expressão
transparecia muita simpatia e começava a me parecer familiar.
Forcei
a memória por um instante. Era a dona Ana. Espantei-me ao ver como o tempo
havia lhe dado novos traços, um olhar calmo e um jeito bem mais sereno, diferente
de toda a agitação de antes. Era viúva e morava em Nova Lima, onde viveu desde
que se casou com seu falecido marido.
Voltei
o olhar para o homem agora ao seu lado. Aparentava já estar na faixa dos seus
quarenta anos. Estava parado, com um meio sorriso no rosto e um olhar
impaciente. Uma cicatriz do lado direito da testa chamou minha atenção.
Finalmente eu o reconheci. Seu nome era Augusto, filho mais velho de dona Ana.
Mudara- se para Campinas há mais de vinte anos, dois meses depois de uma briga
com seu melhor amigo – acontecimento que lhe rendeu aquela cicatriz.
Quase
não tínhamos notícias a seu respeito, o pouco que sabíamos era que havia se
tornado um homem bem-sucedido, era advogado sênior em um famoso escritório de
advocacia e sempre alegava não ter tempo e paciência para muita coisa além de
seu trabalho.
Levantei-me
e fui de encontro a dona Ana. Quanto tempo eu já não via aquela mulher tão doce
que havia marcado a minha infância. Quando me viu, a senhora deu-me um abraço
forte, ao menos o tempo ainda poupava sua força, depois mostrou-me seu filho
toda orgulhosa, era “homem importante”. Augusto, que não fez muita questão de
me cumprimentar, veio visitar a mãe que não via a mais de sete anos e depois de
muita insistência da senhora, resolveu levar a matriarca ao Santa Tereza para
ver os parentes na festa.
Aproveitei
e sentei em uma cadeira vazia daquela mesa. Olhei para o lado, vi rapidamente
uma mulher, que também não reconheci e tive que olhar de novo. Mais uma
surpresa naquele dia: A mulher ao meu lado era Maria, que morava em um lar para
idosos. Foi parar lá, a mando da cunhada Eugênia, que cuidava dela depois de
sofrer alguns AVC’s, porque estava dando muito trabalho. Pouco tempo depois,
seu pai Antônio ficara sobre os mesmos cuidados de Eugênia.
Maria,
que deveria ter seus sessenta e cinco anos, estava de vestido florido e cheia
de acessórios artesanais – depois descobri que ela mesmo havia confeccionado.
Eu esperava encontrá-la algum dia com a carga de tristeza, que dizem ser comum
entre todos que moram em asilos. Engano meu. Acabei de cumprimentá-la e ela
começou a contar todas as novidades com uma tranquilidade invejável. Era cheia
de amigas onde morava. Também estava estudando, fazendo aulas de Artes –
lembrei de ter lido em algum lugar que isso ajuda a mente e serve de terapia.
Era humilde, estava feliz e conformada com a situação, aprendeu a lidar com
aquilo.
Eugênia,
que também já não era tão nova, tinha sessenta anos e aparência de muito mais,
lhe trouxera. Era avó dos gêmeos e tinha preparado a festa. Sempre mandona e
bem desaforada. Mal esperou servirem os salgados, disse a Maria que ela podia
ir embora. A outra ficou sem graça, queria esperar o óbvio, cantarem os
parabéns.
Terminado
todo o ritual de festa de aniversário, pediu um pouco de doce e colocou em uma
sacola. Explicou que depois daria escondido para suas amigas. Ri mentalmente
daquilo, quem diria que um grupo de idosas passaria os enfermeiros para trás.
Então
levantou e se despediu. Disse que fôssemos visitá-la no lar. Deixou um abraço
em cada um e levou as promessas de visitas em breve. A maioria nunca iria lá,
todos sabiam internamente disso, mas naquele momento queríamos acreditar e,
principalmente, que ela acreditasse que isso aconteceria.
Quando
a vi desaparecer do salão, meu coração se apertou. Olhei para os que estavam na
mesa, vi dona Ana esconder uma lágrima inconveniente, Augusto continuava
impaciente e lá traz Eugênia ria, fazendo piada.
No
final das contas, vi que o tempo é tudo. Para alguns como Maria, se torna um
estranho conforto. Para dona Ana, foi um ourives que a lapidou, melhorou o que
já era bom e a fez esquecer os problemas da vida e dos filhos. Com Augusto, homem que um dia foi bom, talvez
fosse tarde, seu coração agora era frio como gelo. Eugênia é exceção, sempre
foi estranha. Já eu, mesmo sendo nova, percebi que talvez fosse bom tomar
vitaminas para memória... Ou o TEMPO, em família, nesse caso, ainda poderia ser
o melhor remédio.
-Amanda Sousa
Kinesianos, esse texto também faz parte do "Epifanias diárias", mas ao contrário do primeiro que eu postei, vai entrar como um conto. Eu espero que vocês gostem do "Questão de tempo".
Comentem aqui embaixo se gostaram do texto de hoje e o que estão achando do "Epifanias diárias". Eu quero muito saber a opinião de vocês. Se vocês quiserem uma continuação mais completa do conto também falem nos comentários porque ainda tem muita coisa que dá para escrever sobre essa história.
Por hoje é só. Beijos e até breve! 💟
Post feito por:
Amanda Sousa
Oi Amanda! Gostei muito da narrativa detalhada que você faz.
ResponderExcluiraboutbooksandmore.blogspot.com.br
Oi, Cássia! Que bom que você gostou! É muito importante para mim receber o feedback de vocês sobre o que eu escrevo e posto aqui no Kinesis.
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